Se a rapariga de 23 anos, agora jazendo na cama, como quem jaz de morte, não tivesse cruzado o caminho de Augusto, 37 anos, agora ausente do enquadramento, Júlia não teria perseguido o homem, como quem persegue dormindo uma cama em sonhos surrealistas, e não haveria aqui guarda-chuva negro em lençol imaculado.
Terça-feira, 9h48, Júlia segue pela rua, rádio entrando pelos ouvidos, colado a cada um pelas peças pequenas e maleáveis dos phones, escuta «aguaceiros e vento moderado» da boca do locutor. Os olhos esbugalham-se, como se toda a surpresa estivesse só neles, o corpo inibido do choque, caminhando como se nada fosse, só os olhos esbugalhados, inundados pelo negro das pupilas, que tomam de assalto todo o espaço disponível.
«Aguaceiros e vento moderado». Júlia desprevenida. Júlia incauta. «Júlia, Júlia, Júlia». Os passos em cadeia inquebrável, um depois do outro, largos e grandes como as suas pernas, esperam o comando. Os olhos fazem riscos num movimento de máquina de escrever, Júlia ouve o plim de cada vez que termina a ronda num dos lados da rua.
Objecto detectado do lado esquerdo, a cerca de 40 metros, na passadeira, ponteando a estrada numa mão grossa. Os pés de Júlia recebem ordem de avanço, aumento de velocidade. Esvoaça o lenço atrelado à sacola, esvoaça a saia longa e corre Júlia inteira, olhos e tudo.
Augusto sente um par de mãos a puxarem-lhe os ombros, vem de trás o susto e o travão. Roda o pescoço. Uma cara tremenda, de maçãs vermelhas, arfa à sua frente. A cena dura 20 segundos, e ao 6.º já Júlia lhe arrancou o objecto preto, longo e pontiagudo, sem que Augusto tenha sequer percebido o que a rapariga lhe levara.
«Rápido, Júlia, rápido».
Não choveu. Júlia, exausta mas segura, guarda a conquista no leito fofo, enquanto dorme para mais um dia.