21
Jan 12

 Laboratório

Telle est la situation : il a perdu le pouvoir de s’exprimer d’une manière continue, comme il faut, soit qu’on veuille satisfaire à la cohérence d’un discours logique par l’enchaînement de ce  temps intemporel qui est celui d’une raison au travail, cherchant l’identité et l’unité, soit qu’on obéisse au mouvement ininterrompu de l’écriture.

Maurice Blanchot, L’entretien infini

 

São oito e meia no sótão da casa. Fora das seis paredes brancas há pessoas a andar para cima e para baixo no Schindler, talvez alguém apressado a utilizar o corredor de emergência, cheiro a comida, caixas de correio com papéis de gramagens variadas. Mas no sótão são só oito e meia. Até daqui a precisamente quarenta e sete segundos, altura em que Helena terá procurado na mala de crocodilo o molho de chaves, terá rodado a maior na fechadura de cima, enquanto puxa a porta para si (como se fizesse rewind, fast, forward), e entra em casa. Quarenta e sete segundos, um novo record, pensa. «Guilherme?» Oito horas, trinta e um minutos e uma mulher de sobretudo cintado.

Quase nove horas. «Cá em cima.» Vinte e dois mil setecentos e sessenta e três caracteres. Dará para consultar o plano? Cálculo mental com risco reduzido. Dá. «Querida Helena, cá estamos.» Faz parte do guião. Vamos cingir-nos a ele. «Dia bom?» Guilherme levanta-se da cadeira, fica altíssimo, põe as mãos nos bolsos. Helena sorri, aparecem-lhe duas rugas curvas debaixo dos olhos. «Cá estamos. Chegou a tal encomenda?»

«Chegou ao final da manhã. Tarde e com o embrulho amolgado. Fico aqui esta noite. Não janto. Recontei os dias, refiz o calendário. Ontem não dormi. Dormi quatro horas. Compreendes. Desci há uma hora para trazê-la e ligar o aquecimento. O quarto tem os estores a meio.»  

Este é o tempo dos carteiros, dos avisos de recepção, dos rastreios. O tempo todo decidido. O tempo que tem validade, data de fabricação e selo de pertença. É o tempo de Guilherme.

***

São dois pisos, com cinco assoalhadas. Primeiro, um homem a viver sozinho. Depois, por força do acaso, da cedência emocional e do tardio pensamento racional (talvez também por interferência de uma espécie muito própria de respeito moralizante), um homem e uma mulher. Ambos sabem disto. Para lá da paliçada feita dessa consciência, a esperança é pharmakon. Desconstroem, por isso, todos os dias, a casa:

Helena está encostada à mesa rectangular, bloco maciço, toalha castanha, imperial, pote azul petróleo ao centro. Os pés, largos, rematam as quatro pernas, assentes num tapete de lã grossa – uma rede onde repousam, alinhados mas não seguros, os pés de Helena. Não saberá ainda que espera por Guilherme. Está demasiado preocupada em contar os dedos das mãos, um, dois, três, quatro, cinco, pausa, cinco, quatro, três, dois, um, assim nunca são tantos como seria de regra. O cabelo tem nós, colados entre o pescoço e a costura larga do colarinho. Helena vai parar o débito e desfazer o arranjo. Urgências são coisas que não têm hora de relógio, são do milésimo sempre anterior, e do que já passou Helena não tem medo.

Guilherme procura o volume epistolar de JD, fazendo uso da escada de degraus pequenos e invariavelmente equidistantes, um aborrecimento, mecânica em madeira. Fora mais lógico e revelar-se-ia vantajoso impor a ordem, depois operá-la, à ordem, como quem sabe que toda a matéria é passível de etiquetação, rotulagem, fila oito. Guilherme quereria ter dito isso mesmo, em voz alta, mexendo os lábios, para que Helena soubesse que lamento com fundações ele podia construir ali, no centro da sala. Uma impossibilidade física, pourtant, metafísica da presença, afirmação constante da inviabilidade do seu projecto maior: bastar-se.

***

publicado por T. às 13:29

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